As interpretações de Rafael Puyana das sonatas para cravo de Domenico Scarlatti são amplamente aceitas como um marco na história da interpretação de Scarlatti, no século XX e continua a sê-lo no século 21. Tal realização foi alcançada por ele ao longo de uma vida inteira de dedicação apaixonada e pesquisa incansável. Uma versão anterior de suas gravações das sonatas de Scarlatti já havia sido considerada uma “referência” nesse campo, em crítica de 1985, assinada por Jean Dupart. Naquele mesmo ano, Puyana foi o cravista escolhido para ser filmado ao executar diversas sonatas para dois documentários, um produzido pela BBC, em associação com RM Arts, e outro pela Radio Televisión Española, para comemorar o 300º aniversário do nascimento do compositor napolitano. Entre os numerosos reconhecimentos recebidos, o rei Juan Carlos da Espanha concedeu-lhe a Ordem de Isabel la Católica, por suas contribuições para a música espanhola de teclado, antiga e contemporânea. A paixão de Puyana por Scarlatti já era bem estabelecida na década de 1950, quando ele se mudou para Lakeville, Connecticut, para estar o mais próximo possível de Wanda Landowska, e beneficiar de sua experiência em aulas na casa da cravista naquela cidade. As aulas se estenderam durante um período de sete anos.
Durante esses anos de formação, Puyana dedicou tempo e esforço consideráveis para estudar e dominar a música de Scarlatti e a do aluno do napolitano, o padre espanhol Padre Antonio Soler. O seu fascínio pela música desses compositores e a de seus contemporâneos de relacionada origem geográfica e cultural levou à redescoberta de repertório menos conhecido, que Puyana tocou e gravou em apresentações memoráveis de tirar o fôlego.
O presente álbum, Domenico Scarlatti – Sonatas and a Fandango, representa os últimos pensamentos de Puyana nessa linha, e está entre os últimos projetos de nossa colaboração para o selo SanCtuS, colaboração essa que durou quase duas décadas e que inclui, em sua grande maioria, outras gravações realizadas pela SanCtuS Recordings (especificamente, para a Coleção Puyana), além de outras gravações completamente revisadas e em grande parte reeditadas. Esse processo, realizado em seu apartamento em Paris, sob a supervisão do artista, foi moldado pelo seu excepcional talento artístico e apoiado por seu vasto conhecimento. Como produtora musical de suas últimas gravações, foi altamente inspirador para mim observar como a complexidade de sua arte refinada ganhava vida durante e após as sessões de gravação e me dei conta da maneira magistral com que ele combinava intensa expressão artística com rigor acadêmico. Enquanto nos aprontávamos (após completado uma sessão de edição) para ouvir juntos os resultados musicais emocionantes alcançados, o brilho em seus olhos se intensificava sempre que eu o aconselhava a “apertar o cinto de segurança” para o que estávamos prestes a ouvir.
Normalmente, essas sessões tendiam a fornecer à sua imaginação infinitas concepções que levavam a melhorias adicionais, pois Rafael não era pessoa que se entregava à auto-satisfação, pois a complacência não figurava entre suas características. As horas enriquecedoras passadas com Puyana não somente representaram para mim uma contínua aula-mestre, como também me ofereceram uma exposição única a seus pensamentos e sua percepções quanto à evolução da interpretação de Scarlatti.
Assim, com relação a algumas das mais significativas contribuições no campo das interpretações de Scarlatti, durante o século XX, ele era de opinião que muitas conquistas célebres deixaram memoráveis impressões, em apresentações de pianistas como Vladimir Horowitz e Myra Hess. Contudo, ainda que músicos excepcionais como esses mantivessem um alto nível de talento artístico e técnico, Puyana lembrava que o envolvimento deles com Domenico Scarlatti ficava confinado, ao tocar sua música no moderno piano de concerto, um instrumento através do qual Puyana sustentava não se poder “levar em consideração as nuances estilísticas impostas pelo desenvolvimento gradual do conhecimento histórico, introduzido no século XX pelo movimento de ressuscitação da Música Antiga. Puyana salientava ainda que, embora Manuel de Falla tivesse defendido desde 1917 música de Scarlatti e Soler em seus programas, tocados no piano moderno em Granada, foi Wanda Landowska quem, já em 1923, apresentou recitais de cravo, inteiramente dedicados a Scarlatti, em sua famosa escola de música em Saint-Leu-la-Forêt, além de ter gravado ela mesma 44 sonatas, entre 1923 e 1940, entre os estúdios de gravação da Victor Company, em Camden, N.J, e o Studio de la Grande Armée, em Paris, para a La Voix de Son Maître. Todas essas gravações foram de qualidade artística tão superlativa que, desde então, nunca estiveram ausentes dos catálogos de discos.
Durante as muitas horas privilegiadas que passamos juntos, Puyana também se referiu a Ralph Kirkpatrick, que tocou e gravou durante as décadas de 1950 e 1960
recitais da música de Scarlatti, em linha com sua edição Urtext de 30 sonatas (Schirmer, Nova York) e de sua “importante biografia analítica” que escreveu sobre o compositor, publicado em 1953. Puyana tinha grande estima por Fernando Valenti, que ele considerava ter sido o aluno mais talentoso de Kirkpatrick na Universidade de Yale e com quem teve o privilégio de conviver, desde a época em que ambos moravam em Nova York. Ele gostava de relembrar como o espanhol interpretou as sonatas nos memoráveis recitais de música de Scarlatti, no New York Town Hall, bem como suas excelentes interpretações em uma série de gravações ilustres, vitais e emocionantes das sonatas, para a Westminster Records. Puyana considerava que as origens espanholas de Valenti ajudaram a revelar a captação genuína do elemento folclórico espanhol na música de Scarlatti. Embora Puyana valorizasse as interpretações de Scarlatti de Scott Ross, ele sempre foi cético em relação às gravações de “obras completas” de qualquer compositor, por qualquer músico, que para ele eram “projetos de maratona”, em que a quantidade desafiava a busca pela melhor qualidade.
No geral, Puyana era aberto a novas ideias e generoso em dar crédito sempre que sentia haver talento e qualidade genuínos. Questionado sobre o amplo reconhecimento e êxito de suas próprias interpretações de Scarlatti, ele respondia sempre que decorria de seu “sentimento visceral, tanto espiritual quanto físico”, pela música que ele tanto amava do napolitano. Ele também considerava que sua própria ascendência espanhola o levou a desenvolver, naturalmente, uma paixão pela música de teclado espanhola, desde o século 16 até ao início do século 19.
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