Trechos do livreto do CD
Arminda Villa-Lobos concebeu a produziu este belo disco que a SanctuS reedita neste momento. Infelizmente, os dados sobre locais e datas de gravação nunca foram registrados mas, apesar dessa lacuna técnica, festejamos esta iniciativa, que conta com o total apoio do Museu Villa-Lobos.
Turíbio Santos
Diretor do Museu Villa-Lobos
As gravações originais das seleções musicais neste CD foram realizadas privadamente, entre meados dos anos 20 e início doa 40. Infelizmente, nada se sabe sobre datas nem locais de gravação, apesar de exaustiva procura junto a pessoas e instituições. Hoje em dia pode parecer-nos surpreendente que Villa-Lobos, figura de importância no mundo da música, tenha vivido durante período em que gravações comerciais se tornavam cada vez mais comuns sem ter deixado para trás como intérprete um legado de sua arte, em gravações feitas de maneira profissional. Isto é ainda mais curioso se considerarmos que ele viajava regularmente para a Europa e para os Estados Unidos e que sua música era, naquela época, publicada em três continentes. Embora as gravações que agora são relançadas neste CD não tivessem sido realizadas profissionalmente, penso que estas interpretações devam ser oferecidas ao público em CD, em virtude de sua significativa importância histórica e artística. As imperfeições que derivam das gravações originais feitas de maneira amadorística são, contudo, compensadas pela nova luz que foi jogada sobre um documento musical excepcional. A oportunidade de se poder ouvir o próprio compositor executando suas composições em diferentes instrumentos dará, tanto a músicos como a amantes da música, nova visão a respeito de Villa-Lobos como intérprete. Estou segura de que os ouvintes apreciarão a inesperada habilidade técnica do compositor e reconhecerão o grande valor musical de suas interpretações.
Betina Maag Santos
Editado pelo Museu Villa-Lobos, no Rio de Janeiro, este disco é precioso porque nos traz nosso maior músico ao piano. O autor deste breve comentário teve o privilégio de ouvi-lo pessoalmente (João Pessoa, PA, 1951), quando acompanhava a Caravana Artística que, dirigida por ele, fez tournée pelo NE do Brasil. O próprio Villa-Lobos subiu ao palco e tocou a Lenda do Caboclo. Proferiu, naquela ocasião, também, o discurso que será conservado por este disco. Inimitável, sua interpretação – a música brotando na frente – pela sonoridade. O fraseado sutil, o sentimento recôndito. Uma interpretação verdadeiramente poética, que recriava a obra, como se a improvisasse. Bastava ele pôr as mãos no piano para acender a atenção auditiva. Com que graça tocou, certa vez, de brincadeira, em aula do Curso de Formação de Professores, alguns compassos da Valsa n◦7 em sol sustenido menor, de Chopin. Não teve, entretanto, formação pianística regular; nem pretendia, mesmo, ser pianista. Dominava outros instrumentos: o violoncelo, o violão, a clarineta – e quanto – aos dois primeiros, foi, sem dúvida, um virtuose. Toca, neste disco, ao violão, o Chôro n◦ 1 e o Prelúdio n◦ 1. Sem haver aprendido piano, executava algumas de suas composições. Fez mais, imprimiu a técnica típica villa-lobiana à sua música de piano, que soa com originalidade e feitio próprio. Seu estilo pianístico nos oferece, de um lado, um tratamento instrumental inconfundível, resultando amplamente sonoro, e de outra parte, coloca-nos em face de árduos problemas rítmicos, fazendo-nos ouvir uma linguagem harmônica pessoal, que dá ao tema folclórico, quando existe, todo o seu verdadeiro sentido, descoberto e profundado pelo compositor. A Lenda do Caboclo, da breve série contida neste disco, gravada pelo Maestro na Reichsrundfunk (Berlim, Alemanha, 1936) é, na sua singeleza, uma das peças de mais penetrante espontaneidade de inspiração, das mais felizes e encantadoras do nosso repertório pianístico. Cristaliza a especial dolência e o langor poético que existem na sensibilidade musical brasileira. O Chôro n◦ 5, gravado também por Villa-Lobos, que se intitula “Alma Brasileira´´ é, talvez, a obra de arte que fixa, com maior relevo, certas peculiaridades psicológicas do nosso tipo humano. Impossível permanecer indiferente, diante da palpitação desta primeira frase que se desenrola sobre o ritmo vago da base, concentrando a capacidade onírica – indecisa, obscura, porém, ainda assim não destituída de uma nobre amplitude da psique racial brasileira. A esse trecho, segue-se a evasão para um território contrastante de alegria buliçosa e, após, de súbito, dá-se a reexposição do tema, que se torna inesquecível pela serenidade e equilíbrio interior a que conduz o ouvinte. Das peças da Prôle do Bebê n◦ 1 que – salvo a Pobrezinha, tão bela, em andamento lento – se animam de turbilhonante e imprevista rítmica, a mais brilhante é o Polichinelo, universalmente conhecido. Ouçamos as soluções que Villa-Lobos, sem ser ou querer ser pianista na acepção completa do termo, obtém do único representante masculino da Prôle, que se caracteriza, exatamente, pela virtuosidade. É apaixonante o estudo da música para canto de Villa-Lobos, pelo que revela, em uma centena de composições, da diversidade extraordinária de inspiração e pesquisa próprias de rumos, de permeio ao embate de influências diversas. Se um precursor, do porte de Nepomuceno, batalhou, com êxito, pela prática do canto em língua nacional, veio Villa-Lobos a impô-lo, definitivamente. E fez mais do que contribuir para que se instituísse, no Brasil, o canto brasileiro, porque foi o primeiro artista que quebrou as limitações do nosso idioma – aqueles limites político-geográficos da língua que já classificaram, enfaticamente, de “túmulo do pensamento´´ − pois nas asas da música soube levar a língua brasileira, conferindo-lhe uma nova dimensão de universalidade, a lugares onde só haviam penetrado antes os cantos francês, alemão, italiano, inglês e russo. Com a cantora Beate Rosenkreutzer ele grava (Berlim, 1936), fazendo a parte pianística, uma de suas composições vocais mais dramáticas e emocionates Nhapôpé, uma de suas melhores harmonizações, que figura na coletânea de Modinhas e Canções. Duas outras de suas harmonizações mais conhecidas com o próprio autor ao piano, se encontram neste disco: Guriatã do Coqueiro, tema de Pernambuco, e Xangô que fazem parte das Canções Típicas Brasileiras (1919). Xangô – sublinha Vasco Mariz (Heitor Villa-Lobos, Editions Seghers, Paris) – é um canto de macumba recolhido por Villa-Lobos. As versões anteriores numerosas e de mau gosto. A do grande compositor do Rio é muito eficaz com sua rítmica alucinante. A interpretação se resume em um crescendo permanente, que deve ser bem dosado, a fim de se obter um clímax, dramático e vibrante. As palavras se cantam duas vezes e o ualelê final e ad libitum, de preferência vociferado em um estado de possessão fetichista.
Eurico Nogueira França
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