Nelson Freire – Ritos de Passagem

Texto de Gilda Oswaldo Cruz
© SanCtuS Recordings

As Gravações Históricas apresentadas no catálogo SanCtuS reúnem documentos musicais excepcionaisde diferentes épocas e estilos. Um exemplo é o álbum “Rites of Passage”, que traz gravações do início da adolescência do célebre pianista brasileiro Nelson Freire. Como todos os títulos SanCtuS, este álbum contém notas de capa informativas em três idiomas, entre as quais um texto inspirado de Alain Lompech, bem como uma bela introdução escrita por Gilda Oswaldo Cruz, ela mesma uma talentosa pianista e escritora

Nelson Freire cumpriu o primeiro rito de passagem por que devem passar os grandes pianistas com apenas doze anos de idade, ao competir com quase meia centena de candidatos vindos de vários países do mundo, todos bem mais velhos do que ele. Foi em agosto de 1957, durante o célebre I Concurso Internacional de Piano do Rio de Janeiro, em que Nelson se classificou em nono lugar. O prêmio significou para o jovem virtuose, acabado de entrar na puberdade, o abandono do mundo protegido da infância e o ingresso no espaço luminoso e amedrontador do estrelato. Recapitulemos brevemente o que era a vida cultural no Rio de Janeiro, então capital da República, o impacto mediático desse primeiro concurso internacional de piano no Rio e a trajetória até aquele momento do menino-prodígio de Boa Esperança, Minas Gerais, destinado a tornar-se um dos maiores intérpretes do mundo.

Uma cidade em ebulição cultural

Há quem diga que o Rio de Janeiro, antes da mudança da capital federal para Brasília, era culturalmente uma das cidades mais dinâmicas do Ocidente. Juscelino Kubitschek tomara posse como presidente da República em 1956, e a partir de então iniciou-se um quinquênio decisivo para o desenvolvimento do país. Nativo de Diamantina – diz a tradição que os nascidos no antigo burgo diamantífero mineiro creem firmemente ser possível mudar a sorte de alguém de um dia para o outro – JK lançaria as bases da segunda onda do desenvolvimento industrial do país, construiria uma nova Capital no centro do vasto território e insuflaria esperança e otimismo no espírito dos brasileiros. Durante o seu governo, a cultura brasileira atingiu um esplendor singular. Na literatura viviam, escreviam e publicavam no Rio de Janeiro os maiores poetas e prosadores brasileiros do seu tempo. O Cinema Novo irrompeu com uma renovação radical. A arquitetura brasileira passava a ser reconhecida mundo a fora pelas realizações de uma geração brilhantíssima. O teatro era uma arte viva, avidamente acompanhada pelo público carioca que acudia em peso às estreias das peças de vanguarda. Nas artes plásticas tudo brotava nos mais diferentes estilos, do abstrato e concreto ao figurativo, do desenho à gravura e à pintura, com grande destaque para a escultura. Na música erudita estava vivo ainda Heitor Villa-Lobos, no auge de sua glória, e animavam os semanais concertos da Orquestra Sinfônica Brasileira, regidos por Eleazar de Carvalho, as novas composições de uma plêiade de grandes compositores. O coro da Associação Brasileira de Canto Coral trazia à luz composições recentemente recuperadas do rico acervo barroco do país. E, para culminar, havia os concertos das Juventudes Musicais nas manhãs de domingo, onde era possível por exemplo ouvirem-se obras de Mahler regidas por Leonard Bernstein e outros grandes nomes internacionais da música. A Associação Brasileira de Concertos, de Maria Amélia Resende Martins, trazia ao Rio a elite dos grandes intérpretes, como Rubinstein, Brailowsky, Gieseking, Backhaus, Firkusny, Friedrich Gulda e a divina Guiomar Novaes. Por último, e não menos importante, a Bossa Nova surgia no horizonte para deleitar cariocas, brasileiros e o resto do mundo. Não é demais lembrar que em 1958 o Brasil conseguiu a sua primeira Copa do Mundo, na Suécia. De tudo isso a imprensa carioca dava vivo testemunho nas páginas e críticas especializadas, na sua maioria esplendidamente redigidas, do Correio da Manhã, Jornal do Brasil, O Globo e revistas semanais ilustradas. Foi nesse rebuliço de criação que surgiu, na imaginação de Alexandre Sinkiewicz e de Maria Augusta Menezes de Oliva, hoje Morgenroth, a ideia de organizar pela primeira vez um concurso internacional de piano na metrópole carioca.

O menino Nelson

Dizem os especialistas que para um grande carreira musical são necessários, além do talento natural do artista, um ambiente familiar estimulante e estável e o longo contacto com professores de elite, desde a mais tenra idade. Tudo isso lhe foi assegurado. O pequeno Nelson, em termos de talento musical um verdadeiro diamante bruto chegado do interior de Minas Gerais ao Rio de Janeiro com 4 anos de idade, já era considerado naquela baixa idade como um prodígio. Tocava em público, lia música, improvisava, tocava arranjos de sua autoria de obras clássicas e populares. Quis a angélica providência que depois de alguns mal-entendidos iniciais, sua arte pianística viesse a ser lapidada, cinzelada e lustrada por duas pedagogas de envergadura excepcional: Nise Obino e Lúcia Branco. No ano de 1956, fizera o concurso para tocar com a Orquestra Sinfônica Brasileira e fora selecionado para interpretar o Concerto KV271 em mi bemol maior de Mozart, no Teatro Municipal. Seu primeiro recital, ainda em 1956, se deu no foyer do Teatro Municipal, com um programa exigente, e teve um resultado notabilíssimo. Tão comentada e apreciada foi a precoce estréia de Nelson, que as próprias organizadoras pediram à professora Lúcia Branco, que tinha assumido a direção dos seus estudos, que ele não deixasse de inscrever-se no concurso.

Três anos em um mês

Lúcia preparava outros candidatos mais velhos e Nelson, a um mês do início das provas, sentia-se um tanto desprotegido. Foi então interpelado por sua primeira e adorada professora, a gaúcha Nise Obino, que estivera proibida por um marido ciumento de dar aulas de piano a quem quer que fosse durante dois anos. Nise provocou o menino: “Vamos ouvir como está esse programa”. Com sua habitual franqueza, assim opinou depois de ouvi-lo: “Isto está péssimo. Vais vir diariamente à minha casa e vamos trabalhar tudo de novo”. Diz Nelson hoje, passados mais de cinquenta anos, que durante aquele mês de aulas secretas com Nise (para não ferir a suscetibilidade de Lúcia Branco) ele aprendeu tanto como em três anos. Nise arbitrou a ordem de apresentação de certas peças do programa, “para empolgar de início”, mandou alguém espionar as provas do candidato polonês, para ensinar ao seu discípulo preferido os segredos da autêntica interpretação da mazurka, repassou com ele em profundidade todo o programa e preparou Nelson, naquele curto intervalo de 30 dias, para o grande salto que o levaria à maturidade artística.

Finalista

Nas primeiras eliminatórias, as suas notas foram as mais altas entre todos os 47 concorrentes. O público lotava o teatro durante as provas que duravam dias inteiros e tomava partido por um ou outro candidato, mas Nelson obtinha uma atenção especial, por ser brasileiro e também por ser a mascote do grupo. Finalmente chegou a eliminatória para a prova final, constando da execução com orquestra de um tempo de um concerto para piano. O próprio Nelson escolhera o Concerto nº 5, op.73, em mi bemol maior, conhecido como Imperador, de Beethoven. Ao ouvir seu nome anunciado como finalista, declarou o menino da época: “Senti um aperto no coração…” 

A prova final

Lily Kraus aplaudiu vivamente, com grande emoção. Guiomar Novaes declarou: “É o nosso Rubinsteinzinho”. Martha Pariente, candidata, opinou que Nelson era o melhor intérprete de todos os candidatos. Sua interpretação do primeiro movimento do Concerto, com a orquestra regida pelo maestro Nino Stinca, fora magnífica, como documenta a gravação, feita ao vivo e irradiada durante a prova, e que consta do presente CD, apesar de ter sido impossível melhorar a qualidade acústica do registro original. Acha-se incluida a título de bônus, devido ao seu grande interesse histórico e musical. O público exultou e os aplausos soaram como uma onda de entusiasmo arrebatador despertado pelo menino artista. O Presidente Kubitschek, na frisa presidencial, aplaudiu de pé e declarou publicamente que garantiria por parte do Governo ao seu jovem conterrâneo uma bolsa de estudos no exterior. Nelson a tudo agradecia com timidez, sem um único sorriso, modesto e compenetrado.

Ecos do concurso

O primeiro prêmio foi atribuído a Alexander Jenner, pianista vienense, que teve um gesto de extrema generosidade ao escrever no programa do concurso, acima do autógrafo que lhe pedira Nelson: “Ao verdadeiro ganhador deste concurso”. Pouco depois de terminada a competição no Rio, realizou-se o Festival de Piano de São Paulo onde foram convidados a participar todos os finalistas. Foi em consequência de sua participação no I Concurso Internacional do Rio de Janeiro que Nelson foi convidado fazer as gravaçoes que hoje a SanctuS Recordings reedita na presente versão. As gravaçoes foram gravadas em estúdio em apenas duas horas, e a última peça do repertório aqui recuperado, o Scherzo nº 1 em si menor, foi estudada e memorizada em duas semanas.
Dois anos mais tarde, Nelson embarcaria para a Europa, acompanhado por Bruno Seidlhofer, com quem viria a estudar durante alguns anos em Viena. Em 1964 ocorreu por fim a sua definitiva consagração, com o primeiro prêmio do Concurso Internacional Vianna da Motta, em Lisboa. Doravante sua carreira tomou o rumo que sabemos, colocando-o no primeiro plano dos grandes músicos internacionais da atualidade.

Text by Gilda Oswaldo Cruz
Translation by Affonso José Santos
©SanCtuS Recordings 2021

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